Por Karla Spotorno
A falta de um
projeto para a aposentadoria é comum entre os brasileiros por fatores
culturais. As pessoas ainda são educadas a seguir roteiros preestabelecidos e a
buscar um emprego em vez de empreender, aponta Renato Bernhoeft, da consultoria
höft. Ele observa que as famílias estimulam os filhos a conquistar uma carreira
numa empresa grande ou mesmo a fazer um concurso público. Para Denise
Mazzaferro, sócia da consultoria Angatu IDH e mestre em gerontologia pela
PUC-SP, "a grande questão é que quem deve construir a história da sua vida
é você". Apesar disso, considera ela, alguns pais ainda dizem o que o
filho deve fazer, e as empresas continuam sendo vistas como responsáveis pela
carreira do profissional.
Essa passividade
foi o que motivou o especialista em finanças pessoais Gustavo Cerbasi a
escrever seu 12º livro. "Adeus, Aposentadoria" foi lançado mês
passado, depois de uma lenta gestação de quase sete anos. Ao longo de todo esse
tempo, Cerbasi observou uma repetição no comportamento das pessoas que o
procuravam depois de palestras ou quando ainda prestava consultoria. "Muitos
poupavam para a aposentadoria, mas estavam descontentes, porque sabiam que
economizavam menos do que poderiam, não gostavam de poupar e entendiam que a
poupança não era o suficiente", conta.
Talvez por conta
desses relatos, Cerbasi decidiu começar seu livro de forma apocalíptica. Ele
escreve: "Esqueça tudo o que você já ouviu falar sobre aposentadoria.
Aliás, esqueça a ideia de se aposentar. Aposentadoria, no sentido que o senso
comum dá a essa palavra, é um conceito ultrapassado".
O conceito nasceu,
realmente, no século retrasado. Foi na década de 1880, quando o chanceler
alemão Otto von Bismarck criou o primeiro sistema de pagamento de pensão a
trabalhadores. "O modelo bismarckiano foi criado em uma época em que as
pessoas trabalhavam até poucos anos antes de morrerem", conta Kylza
Estrella, geriatra e diretora técnica do Grupo Santa Celina. Nem é preciso
voltar tanto tempo para entender que as pessoas vivem muito mais hoje. Em 1980,
os brasileiros tinham uma esperança de vida ao nascer de 62,6 anos, segundo o
IBGE. Em 2013, esse número subiu para 74,23 anos.
Se considerarmos a
expectativa de vida que serve de referência no mercado nacional de seguros de
vida e previdência, o homem brasileiro vive em média até os 86,4 anos e a mulher,
até os 89,7 anos. Considerando que um trabalhador se aposenta aos 65 anos,
somam-se aí 21 anos. É um bocado de tempo. É suficiente para o indivíduo, na
primeira fase da vida, crescer, se desenvolver, cursar toda a escola e,
eventualmente, até se formar na faculdade.
No caso da mulher
que se aposenta aos 60 anos, são quase 30 anos. É muito tempo para ficar sem
nenhum interesse ou agenda mais assertiva. "Sem fazer nada, o declínio das
capacidades vitais [entre elas, as intelectuais, como memória e agilidade no
raciocínio] acontece muito rapidamente", afirma Kylza, doutora em
planejamento de saúde com foco na terceira idade.
A mulher, contudo,
tem mais facilidade para viver essa etapa, na avaliação de Bernhoeft e de
Denise, da consultoria Angatu IDH. Eles explicam o porquê. "Geralmente,
elas não dedicam 100% do seu tempo ao trabalho, como ocorre com muitos homens.
Cuidam da casa, da família, dos filhos", diz. Relacionam-se com os
vizinhos, com a sogra, com as professoras da escola, com as mães dos amigos dos
filhos. Já quem não tem outra atribuição tende a perder a sua identidade social
quando para de trabalhar. É o sujeito que fica em casa sem se reconhecer
naquele ambiente doméstico em que passava poucas horas do dia, a maioria delas
dormindo. Há quem perca até o círculo de amizades, caso todas estejam atreladas
ao trabalho.
A falta de uma
rede de apoio e de atribuições fica ainda mais preocupante quando se percebe a
transformação socioeconômica que o Brasil vive. O modelo tradicional ao qual o
brasileiro está acostumado - em que os idosos contam com a ajuda financeira ou
moram com os filhos - está ruindo.
Denise ilustra bem
essa situação citando a foto da família brasileira de antigamente e a de hoje.
Há algumas décadas, o retrato mostrava dois ou três idosos, o triplo de adultos
e uma dúzia de crianças. Hoje, o modelo de núcleo familiar é 4-3-1, segundo a
especialista. São quatro avós, três pais, dados os divórcios seguidos de novos
casamentos, e apenas um filho. Nem é preciso perguntar se esse um vai conseguir
sustentar ou abrigar em sua casa tanta gente. Esse novo arranjo pode ser visto
nas estatísticas do IBGE como uma tendência. Segundo o instituto, a taxa de
fecundidade (quantos filhos uma mulher tem) cai ano a ano no Brasil. Era 2,39
em 2000 e 1,64 no ano passado.
Mas não é só a
mudança na estrutura familiar que impacta o arranjo para cuidar dos idosos. Nas
cidades grandes, os imóveis novos são, na média, menores do que antigamente. Em
muitas casas, não há uma pessoa disponível para ser o cuidador. As mulheres,
que geralmente exercem essa tarefa, vêm ganhando maior importância no mercado
de trabalho. Em relatório do fim do ano passado, os pesquisadores do IBGE
afirmam que "as estatísticas mais recentes sobre as mulheres brasileiras
mostram que, cada vez mais, elas estão presentes no mercado de trabalho".
O resultado dessa emigração feminina é que 38% dos domicílios no Brasil
dependem principalmente da renda feminina. Em 1991, essa fatia era de apenas
18%.
A preocupação com
o cuidado dos mais velhos é essencial quando se observa um número clássico da
geriatria, mencionado pela médica Kylza. Cerca de 60% dos idosos têm entre três
e quatro doenças crônicas. "No envelhecimento, saúde tem um conceito muito
maior do que ter ou não uma doença. Falamos em preservação da autonomia e da
independência", afirma a geriatra.
O primeiro passo
para viver bem as últimas décadas de vida, na avaliação de Cerbasi, é não
entender essa fase como o "grand finale" de uma longa jornada.
Aposentar-se não é o fim. É o começo de um novo ciclo, ele diz em tom de
autoajuda. "A aposentadoria não pode mais ser vista como a grande
conquista da carreira e de uma vida inteira. É o momento para começar algo.
Pode ser tanto trabalhar em cima do patrimônio conquistado ao longo dos anos
como empreender em uma nova frente", afirma.
No livro, Cerbasi
propõe que as pessoas empreendam. Isso não significa dizer que todo aposentado
precisa montar um negócio. Quem não está preparado nem deve, diz o autor.
Walter Tommasi, o aposentado de 63 anos do início da reportagem que, como ele
mesmo destacou, construiu uma vida além da carreira profissional, tentou.
Depois de três anos publicando uma revista denominada "Free Time"
sobre gastronomia, cultura, lazer, o aposentado e empreendedor decidiu fechar
as portas. Ele conta que a revista não dava prejuízo. O problema é que não dava
lucro e ainda gerava incômodos. Assim, optou por continuar fazendo apenas o que
gosta. Regularmente, escreve sobre vinhos para outras publicações e organiza
degustações, atividades pela quais é remunerado. "O que eu digo é que a
pessoa deve ter uma atitude empreendedora. Só para dar um exemplo, pode dedicar
mais tempo para cuidar dos imóveis que tem alugados", diz Cerbasi.
A bandeira
levantada por Cerbasi e as discussões propostas por Bernhoeft e Denise vêm,
gradualmente, ganhado novos interlocutores e audiências. No cinema, alguns
filmes discutem a situação do idoso, como é o caso de "E se vivêssemos
todos juntos" de 2010. No ano passado, a antropóloga Mirian Goldenberg lançou
o livro "A Bela Velhice", em que mostra um envelhecimento com
liberdade e beleza. "É um novo imaginário despontando e que começa a
deixar para trás a representação sombria da velhice", diz Fátima Belo,
empresária de pesquisa de comportamento e curadora do curso "Top Agers - A
Alta Maturidade e suas Descobertas", programado para outubro na Casa do
Saber. São novas representações, como se refere Fátima, que podem servir de
inspiração para quem começa a refletir sobre o seu próprio amadurecimento.
Aí vem a segunda
boa conclusão citada no início da reportagem. É possível fazer isso agora. Quem
fez essa reflexão, caso do aposentado feliz na foto da primeira página do
caderno, garante: "Pode até parecer meio arrogante. Mas a vida que eu levo
hoje é fantástica. Se eu soubesse [que iria ser assim], teria me aposentado
antes".
FONTE: Valor Econômico - 03/09/2014